Realidades, ilusões, utopias...

A ópera tem uma relação infinitamente subtil com o mundo real. Alimenta-se dele, reinventa-o, embeleza-o, transpõe-no e modifica-o ao sabor da criatividade dos artistas. É esta a fonte do prazer infinito de cantar, dos élans da orquestra e do coro, desta arte que estimula a nossa imaginação e inspira a nossa reflexão...

Para além do imaginário de uma Idade Média idealizada, o mundo de Maeterlinck e Debussy em Pelléas e Mélisande é o material dos sonhos e das fantasias: a orquestra, os silêncios, as palavras não ditas ultrapassam constantemente as palavras. Katie Mitchell amplifica esta dimensão onírica através do prisma de uma Mélisande omnipresente, entre o sonho e a realidade.

Se há uma ópera que trata da desilusão no amor, é certamente Così fan tutteEste trabalho de iniciação é absolutamente gracioso, mas não isento de amargura. Christophe Honoré ambienta a sua produção numa cidade africana do período colonial. A discrepância que cria não prejudica de forma alguma a história, mas sublinha a universalidade desta obra-prima.

O próprio título do Trionfo del Tempo e del Disinganno baseado num libreto do Cardeal Pamphili, revela a sua intenção moralizadora: a Beleza e o Prazer enfrentam o Tempo e a Desilusão numa luta desigual... Krzysztof Warlikowski retoma a fábula e ilumina-a com os fogos da adolescência.

Zoroastro é ambientado num mundo inspirado nos antigos cultos do mundo babilónico. Como Mozart faria mais tarde em A Flauta MágicaRameau inspirou-se neste mundo antigo fantasiado para desenvolver uma conceção do mundo baseada nos ideais maçónicos.

Édipo não consegue suportar a revelação da sua união com Jocasta, sua mãe e sua mulher. Arranca os olhos e condena-se ao exílio. Sublinhando a dimensão arcaica e intemporal do mito, Stravinsky escolheu musicá-lo em latim. Peter Sellars regressa à fonte, relendo Sófocles e prolongando a ópera de Stravinsky com a história de Antígona, ecoada pelos admiráveis coros do Sinfonia de Salmos.

Mais uma estreia mundial nesta edição, Kalîla wa Dimna de Moneim Adwan, uma ópera cantada em árabe e falada em francês, vai buscar o seu material narrativo a uma coleção muito antiga de fábulas de animais. Também aqui, as realidades do poder, a corrupção que ele produz e a utopia da mudança radical transcendem os tempos.

A arte pode parecer irrisória face à violência e ao medo que afligem o nosso mundo. Por mais frágil que seja perante o obscurantismo e o terror, oferece-nos a memória, a criatividade e a força utópica de que precisamos para sobreviver às explosões e inventar um futuro diferente. Cada comunidade de espectadores reunida por uma obra de arte é uma experiência da nossa humanidade partilhada. Essa experiência é mais preciosa do que nunca.

Bernard Foccroulle
Diretor Geral

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